domingo, 12 de fevereiro de 2012

Flanando pelo Sertão

E foram todos para Taperoá. Na verdade, a tropa era de apenas quatro:  Paulo Bezerra, Roosevelt Garcia, Eduardo Melo e este escrevinhador. O destino era a fazenda Carnaúba, de Manoel Dantas Vilar Filho, Manelito, nos Cariris Velhos da Paraíba. Daqui, da beira do Potengi, até lá, uma tirada boa de 350 quilômetros, atravessando o Trairi e o Seridó, Dudu pilotando o carrão do doutor Balá. Saimos no amanhecer de terça, voltamos na tarde de quinta. Na ida, duas paradinhas: uma em Tangará, para comer pastel que ninguém comeu e a outra em Parelhas, para botar gasolina. Quatro horas de muita prosa e a paisagem forte, encantadora do sertão. Os flamboaiãs fazem a festa repetindo aqui e acolá suas cores firmes. É o seu verão. Vê-se muito flamboaiã plantado nas ruas da cidade do Seridó e dos Cariris da Paraíba. Nas beiras das estradas, também. Uma beleza.

Em Carnaúba, além da fidalga hospitalidade sertaneja que reina  ali, podemos nos deleitar com  a prosa do doutor Manelito, cheia de  sabedoria, pelos tantos alpendres da casa patriarcal, duas vezes centenária, por onde já passaram muitos peagadês a procura de ensinamentos de  como viver e trabalhar no sertão do semiárido, mexendo com zebus das raças Guzerá e Sindi, vindas do outro lado do mundo, de terras também secas, e raças nativas de cabas e ovelhas. Viver e conviver com a seca. Carnaúba também está  no roteiro de  pesquisadores e estudantes de importantes universidades brasileiras. Até gringos. Políticos são outros que  gostam de arranchar por lá. O doutor Miguel Arrais, por exemplo, gostava.  Até porque Carnaúba fica no meio do caminho entre Recife e o Crato, no cariri cearense, onde ele nasceu.


E aí você fica na roda se deliciando com o dueto, flauta e cavaquinho, de Manelito e Paulo Bezerra, trocando histórias do Sertão. Roosevelt e eu frequentamos aqueles alpendres há trintanos. Dudú é também freguês assíduo, de uns tempos pra cá e está nos preparativos para realizar, em julho que vem, um grande leilão de Sindi e Guzerá num dos pátios da Carnaúba. Será o primeiro grande leilão nacional de raças zebuínas e de caprinos e ovinos de raças nativas a se realizar no meio da caatinga nordestina. Taperoá vai receber gente de todas as partes do país.

Ir a Carnaúba não é somente ficar no bem-bom, no papo dos alpendres, de onde também se ouve o canto do concriz pulando nas craibeiras ou degustando uma boa cachaça ou um tinto da reserva da casa, este mais servido no esticar da noite, que lá é fria. É também botar a sola no chão e andar pelos currais ou pelos cercados e revezos para ver os bois, as vacas, as cabras e ovelhas. Às vezes essas esticadas podem acontecer - como aconteceu desta vez - às outras terras dos Dantas Vilar: à fazenda Pau Leite, a uma boa distância da sede da Carnaúba. Um encantamento ver nos currais de pedra as cabras Azuis, Moxotós, Canindés, Repartidas, Murcianas e as ovelhas Cariris, Moradas Novas e Barrigas Negras, raças rigorosamente selecionadas por Manuelito, tarefa que começou lá atrás numa parceria com o primo Ariano Suassuna. Deleita-se e se aprende muito.

Nas Pinturas

Não é fácil deixar o mundo mágico da Carnaúba. Depois da décima rodada de café, Manelito continua segurando o freguês, insistindo para que o visitante fique porque a mesa está sendo posta para o almoço, como determina a hospitalidade sertaneja. Mas demos um drible no ilustre e generoso anfitrião, nos despedimos e retomamos a estrada de volta. A fazenda Pinturas, no Acari, nos aguardava, e o próximo anfitrião estava a bordo.  Voltamos pelo mesmo roteiro. No meio da tarde estávamos na varanda da Pousada Gargalheira diante da beleza incomparável daquele cenário de água represada, a perder de vista nas rochas de suas serras circundantes. O almoço foi tilápia, pescada ali mesmo. O pirão é "pareio" com o da Compadre, da Ponta do Morcego. Estava sublime. Não sei se o mesmo prato foi servido aos noruegueses, que ocupavam uma mesa adiante. Uns dezoito galegos e galegas, meninos no meio. 

Que danado faziam esses escandinavos pelas caatingas seridoenses? Eram turistas que estavam em Pipa e queriam conhecer o sertão, me disse o guia. Pelas caras, coradas e risonhas, estavam gostando, sim, do que viam e do que comiam. Me disse ainda o guia que, aqui e acolá,  aparece gringo nas praias de Pipa querendo conhecer o interior do Estado. No meio da conversa surgiu Francisco Balá, sobrinho de Paulo, dono da Pousada e criador de cabras naqueles pedaços de serras. Como o tio, bom de papo também.

Antes de pegar o rumo de Pinturas, onde dormiríamos, passamos pelo atelier de Dimas, que fica na beira do Açude, perto da Prainha. É uma palhoça, cercada de catingueiras. Ali ele trabalha o granito e nele faz a sua arte de grande escultor. O artista não estava. Na puxada de palhas, meia dúzia de gatos espreguiçavam. O fogo da trempe, onde o escultor prepara o seu repasto, estava apagado.

Chegamos nas Pinturas quando a lua cheia aparecia por trás da Serra dos Bois. Dois dedos de prosa, antes de servida a mesa lauta do jantar sertanejo. A casa da fazenda é de uma arquitetura sem igual por estes sertões seridoenses. Foi erguida em cima de uma rocha, de um lajedo. A sala de jantar, ampla, termina no fogão a lenha que, no frio do inverno, certamente funciona como lareira.  Mais uma rodada de conversa, enquanto a noite se alongava pelas matas das serras, até o sono botar todos pra dentro dos quartos.

Logo cedo, o canto da passarinhada, entre eles a Asa Branca, o Concriz, e o Sabiá, fez a saudação matinal, o dia clareando. Lá de baixo, na beira do açude, vinham os mugidos do curral. No café, entre outras delícias, umbuzada. A conversa passou para outra sala. Nas paredes fotografias de muitas gerações. Ali, talvez, a inspiração do escritor para as cartas famosas.  Paulo foi buscar um calendário, presente do poeta Jessier Quirino, com o título de Encourados. É a síntese de uma exposição do fotógrafo pernambucano Geyson Machado com textos da jornalista Adriana Victor, "Inventário fotográfico, integração sonora e registros escritos sobre o vaqueiro e a lida com o gado". Resultou no livro-álbum Encourados. Tem passagens com Ariano Suassuna. Aliás, a autora escreveu um ensaio biográfico de Ariano: Ariano Suassuna - um perfil biográfico, publicado pela Zahar em 2007.

Belas fotografias. Entre os vaqueiros fotografados, aparecem dois do Acari. Dali mesmo do entorno das Pinturas. Às folhas tantas, um poema de Gerardo Mello Mourão, o grande poeta cearense, um dos maiores do Brasil. Título do poema "Suite do Couro - 6". Está no seu livro Algumas Partituras.

"No principio, erao couro. / Navegavam nos couros o sertão de couro, /  e o sertão era o couro e era o sertão. // E, às vezes, serras. Ibiapabas, Borboremas, a Serra Azul, / onde o boi ensebado escorregava à mão couruda / do vaqueiro encourado, ao laço, ao relho peludo. // No princípio, era o couro - as caronas fofas, / a guaiaca de anéis e patacões, / peia, maneia, chincha e sobrechincha, / dicionários curraleiros de laços e ligas, / regeiras e ligários e fiéis, entre bruacas de mercado / de surrões de sola vermelha para a farinha branca, / manguás de açoite, patuás de rezas, atabaques de festa. // Na garupa / das selas de vaqueta e alforges bordados / era a paçoca pisada no pilão de pau-darco / e as rações de água fresca viajavam / nas borrachas de sola ao balanço da canga / dos bois de carro." Tribuna do Norte

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